O ACONTECIMENTO...
"Tudo em Lewis Carroll começa por um combate horrível. É o combate das profundezas: coisas arrebentam ou nos arrebentam, caixas são pequenas demais para seu conteúdo, comidas são tóxicas ou venenosas, tripas se alongam, monstros nos tragam. Um irmãozinho usa seu irmãozinho como isca. Os corpos se misturam, tudo se mistura numa espécie de canibalismo que reúne o alimento e o excremento. Mesmo as palavras se comem. É o domínio da ação e da paixão dos corpos: coisas e palavras se dispersam em todos os sentidos ou, ao contrário, soldam-se em blocos indecomponíveis. Nas profundezas tudo é horrível, tudo é não-senso. Alice no país das maravilhas era para intitular-se inicialmente As aventuras subterrâneas de Alice.
(...)
Não que a superfície tenha menos não-senso do que a profundidade. Mas não é o mesmo não-senso. O da superfície é como a ‘Cintilância’ dos acontecimentos puros, entidades que nunca terminam de chegar nem de retirar-se. Os acontecimentos puros e sem mistura brilham acima dos corpos misturados, acima de suas ações e paixões emaranhadas. Como um vapor da terra, desprendem na superfície um incorpóreo, um puro ‘expresso’ das profundezas: não a espada, mas o brilho da espada, o brilho sem espada como o sorriso sem gato. Coube a Carroll ter feito com que nada passasse pelo sentido, apostando tudo no não-senso, já que a diversidade dos não-sensos é suficiente para dar conta do universo inteiro, de seus terrores como de suas glórias: a profundidade, a superfície, o volume ou superfície enrolada.”
GD, Crítica e Clínica (São Paulo, Ed.34, 1997; pp.31-2)
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Não que a superfície tenha menos não-senso do que a profundidade. Mas não é o mesmo não-senso. O da superfície é como a ‘Cintilância’ dos acontecimentos puros, entidades que nunca terminam de chegar nem de retirar-se. Os acontecimentos puros e sem mistura brilham acima dos corpos misturados, acima de suas ações e paixões emaranhadas. Como um vapor da terra, desprendem na superfície um incorpóreo, um puro ‘expresso’ das profundezas: não a espada, mas o brilho da espada, o brilho sem espada como o sorriso sem gato. Coube a Carroll ter feito com que nada passasse pelo sentido, apostando tudo no não-senso, já que a diversidade dos não-sensos é suficiente para dar conta do universo inteiro, de seus terrores como de suas glórias: a profundidade, a superfície, o volume ou superfície enrolada.”
GD, Crítica e Clínica (São Paulo, Ed.34, 1997; pp.31-2)
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