quarta-feira, julho 06, 2005

Diagnosticar os fluxos de desterritorialização-reterritorilização...

"Diagnosticar os devires, em cada presente que passa, é o que Nietzsche atribuia ao filósofo como médico, 'médico da civilização' ou inventor de novos modos de existência imanentes. A filosofia eterna, mas também a história da filosofia, cedem lugar a um devir-filosófico. Que devires nos atravessam hoje, que recaem na história, mas que dela não provêm, ou antes, que só vêm dela para dela sair?"
D&G, O que é a filosofia? (São Paulo, Ed.34, 1992; pp.145-6).

sábado, julho 02, 2005

Exílios

E aí galera nômade!
Ontem assisti a um filme nômade, um filme sobre nômades: Exílios.
Alguém viu? Deve ser visto.
É um road-movie a européia, um road-movie andarilho, road-movie cigano, mas, sobretudo, o primeiro road-movie do terceiro milênio. Ele realmente atualiza o gênero: é o que pode ser a "road" hoje, é o que pode ser a viagem, o contato com a diferença, o "despaisamento" (depaysement), o "estrangeiro", num mundo percorrido por multidões nômades, em exílio (prontas para o ÊXODO?)...
O casal francês - descendentes de argelinos (filhos de exilados, ontem) - resolve partir a pé para a Argélia, atravessando a Andaluzia com toda sua "mestiçagem" árabe-européia temperada pela força "desterritorializante" dos gitanos...
Sua viagem é no contrafluxo das multidões de exilados argelinos e outros exilados que, hoje, se deslocam para a França...
Mas eles, com seus “territorializantes” passaportes europeus, se descobrem não menos exilados nesse mundo e são mesmo exilados que retornariam ao lar, a um lar em que nunca antes estiveram. E são acolhidos, calorosamente acolhidos como velhos membros da família (agnática!)...
Na existência nômade, em toda parte se está em casa, mas também, em toda parte se é estrangeiro, como descobre a garota ao chegar à Argélia...
Em suma, um filme muito interessante para uma discussão sobre o que está em curso na bolinha azul. Para uma discussão política. Isto é, biopolítica.
O filme, nesse sentido, é realmente muito bom e se caracteriza, estranha e significativamente, como um "road-movie sociológico". O velho gênero dos jovens "em revolta" que põem o pé na estrada é atualizado numa versão que compendia os aspectos mais fundamentais da mutação sócio-política em curso. Trata-se de um filme sobre o processo de plasmação de multidões nômades, em exílio (prontas para o ÊXODO?)...
Um filme político: a música com que abre a primeira cena do filme fala de DEMOCRACIA. Merece uma atenção especial, cada diálogo, cada canção do filme, suas letras, sem contar as músicas (do próprio diretor cigano, Tony Gatlif), que são alucinantes...
Em cada detalhe, é possível perceber essa composição cuidadosa de uma imanência cinematográfica em que os personagens afetivos, aqueles que sofrem a história na carne, são também aqueles que são a carne da história, isto é, são também os protagonistas potenciais de uma nova invenção biopolítica. As subjetividades em exílio preparariam o caminho do ÊXODO...
Imanência cinematográfica em que as multidões são, elas mesmas, protagonistas dessa história, com suas redes de cooperação, confiança, solidariedade, enfim, em que as multidões aparecem como predestinados sujeitos históricos da DEMOCRACIA, entendida, assim, como a produção biopolítica que lhe é própria.
Enfim, dá para conversar de tudo isso e muito mais a partir desse filme. Quem puder ver, sugiro.
Eu o elejo "cinegrafia" básica de nosso grupo de estudos.

Abração geral.
Ricardo

Pra quem quiser ter uma prévia com trailer e outros babados, só clicar aqui:
Exílios

sexta-feira, julho 01, 2005

O ACONTECIMENTO...

"Tudo em Lewis Carroll começa por um combate horrível. É o combate das profundezas: coisas arrebentam ou nos arrebentam, caixas são pequenas demais para seu conteúdo, comidas são tóxicas ou venenosas, tripas se alongam, monstros nos tragam. Um irmãozinho usa seu irmãozinho como isca. Os corpos se misturam, tudo se mistura numa espécie de canibalismo que reúne o alimento e o excremento. Mesmo as palavras se comem. É o domínio da ação e da paixão dos corpos: coisas e palavras se dispersam em todos os sentidos ou, ao contrário, soldam-se em blocos indecomponíveis. Nas profundezas tudo é horrível, tudo é não-senso. Alice no país das maravilhas era para intitular-se inicialmente As aventuras subterrâneas de Alice.
(...)
Não que a superfície tenha menos não-senso do que a profundidade. Mas não é o mesmo não-senso. O da superfície é como a ‘Cintilância’ dos acontecimentos puros, entidades que nunca terminam de chegar nem de retirar-se. Os acontecimentos puros e sem mistura brilham acima dos corpos misturados, acima de suas ações e paixões emaranhadas. Como um vapor da terra, desprendem na superfície um incorpóreo, um puro ‘expresso’ das profundezas: não a espada, mas o brilho da espada, o brilho sem espada como o sorriso sem gato. Coube a Carroll ter feito com que nada passasse pelo sentido, apostando tudo no não-senso, já que a diversidade dos não-sensos é suficiente para dar conta do universo inteiro, de seus terrores como de suas glórias: a profundidade, a superfície, o volume ou superfície enrolada.


GD, Crítica e Clínica (São Paulo, Ed.34, 1997; pp.31-2)